Publicada em: 28/10/2016
Vencedora na categoria Impresso Nacional
Flávia Yuri Oshima / Revista Época
Anna Julya do Espírito Santo da Silva, de 15 anos, nunca foi uma aluna exemplar. Seu problema não era a compreensão dos conteúdos, mas a preguiça em concluir as tarefas de classe e de casa. A displicência primeiramente a afastou das notas mais altas. Depois, passou a comprometer o aprendizado. “Fui acumulando defasagem em matemática”, diz Anna Julya. “Depois de um tempo, já não conseguia acompanhar a turma.” Em 2013, ela foi reprovada no 7º ano.
Com esse histórico, Anna Julya destoa do grupo de crianças com ótimo desempenho acadêmico que a Escola Municipal Francis Hime reuniu, a pedido de Época. Para sair na foto dos alunos que são medalhistas da Olimpíada de Matemática do Estado do Rio de Janeiro (Omerj), ela arrumou de improviso uma medalha de prata – tomou emprestada uma das nove de seu amigo Victor Marinho, de 13 anos. Mas não se trata de fraude. Ela havia esquecido a medalha em casa e aquele era um dia de tirar retrato. Pouco mais de seis meses depois de ter sido reprovada por causa da matemática, Anna Julya se tornou, de fato, uma atleta dos números: competiu e ficou entre os melhores estudantes de matemática do Rio de Janeiro.
A mudança brusca na trajetória de Anna Julya com os números se deu depois de alguns meses de aula com Luiz Felipe Lins, de 44 anos, professor de matemática da Francis Hime, uma escola pública localizada na Estrada do Pau da Fome, em Taquara, um bairro de classe média baixa da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Desde 2005, quando foi criada a Obmep (Olimpíada Brasileira de Matemática do Ensino Público), Anna Julya, Victor e outras dezenas de alunos de Luiz Felipe conquistaram 176 medalhas e centenas de menções honrosas nas quatro versões de olimpíadas de números que existem – duas estaduais e duas nacionais.
Esses números são, por si só, impressionantes. São ainda mais admiráveis porque Luiz Felipe não treina uma garotada pré-selecionada – como fazem alguns cursinhos de ponta, para alardear percentagens admiráveis de sucesso de seus alunos no vestibular. Luiz Felipe dá aula para estudantes da periferia – entre eles, vários moradores de favela – que chegam com todo tipo de dificuldade de aprendizado ao ensino fundamental II, a etapa que vai do 6º ano ao 9º ano. Uma vez em sua classe, vários começam a se sobressair – quase como por milagre. O desempenho de Luiz Felipe se torna mais reluzente quando se conhecem os indicadores do desempenho alarmante dos estudantes brasileiros em matemática: apenas 16% das crianças que deixam o 9º ano têm o nível de conhecimento adequado na área. Ao final do ensino médio, a taxa cai para meros 9%.
Como Luiz Felipe consegue driblar as estatísticas nacionais e colocar seus alunos entre os melhores do estado e do país em matemática? Não há uma resposta única para essa questão. Pelo contrário: a resposta pode variar tanto quanto o número de alunos. O segredo do sucesso de Luiz Felipe, a despeito das salas lotadas e da diferença de aprendizado dos estudantes, é ensinar cada criança da forma como ela é capaz de aprender.
Foi assim que ele agiu quando Anna Julya chegou a sua sala de aula. Ela não dominava conceitos que já devia conhecer e se embaralhava com os cálculos. Não à toa, quando as aulas de matemática começavam, Anna Julya ficava na defensiva. Era quieta e absolutamente desinteressada. Aquela era a disciplina que dera a ela seu primeiro grande fracasso na vida escolar. Luiz Felipe seguia com suas aulas e observava o efeito de diferentes estratégias na garota. Como era seu rendimento quando trabalhava em grupo? Ela manuseava material para comprovar alguma teoria? Finalmente, Luiz Felipe encontrou uma outra Anna Julya quando lançou em sala um jogo em que cabia aos alunos decifrar um enigma. “Ficou evidente que ela gostava de desvendar problemas”, diz Luiz Felipe. “Quando deparava com um, ela se concentrava até descobrir o caminho da resposta.”
Ao ver como a disposição de Anna Julya mudava quando tinha de resolver problemas, Luiz Felipe passou a adaptar os conteúdos de matemática que ela deveria aprender para esse formato. A menina começou então a se aplicar nos cálculos mais difíceis para chegar às soluções de cada problema. “Passei a trabalhar outros conceitos nesse formato com ela”, diz Luiz Felipe. Quando o professor sugeriu que ela se inscrevesse na olimpíada, Anna Julya achou que fosse uma brincadeira. “Disse para ele que eu era péssima em matemática”, diz ela. “Daí ele falou: ‘Para com isso, menina, ninguém lida com problemas como você’. E não foi que eu ganhei?”, diz sorrindo.
A sensibilidade e a habilidade que Luiz Felipe desenvolveu para lidar com os alunos mais preguiçosos e prender sua atenção se devem, em grande parte, ao fato de que ele próprio foi um deles. Em sua adolescência, o desinteresse de Luiz Felipe, durante algumas aulas, era tamanho que o levou a uma sucessão de advertências. Elas culminaram na repetência, na 5a série do 1º grau (atual 6º ano). “Ele não era baderneiro, mas imitava pomba!”, conta Luiza Lins, tia de Luiz Felipe, que ajudou a criá-lo. “A professora dizia que ele passava a aula fazendo purrrr, purrrr, purrrrr”, afirma ela, entre indignada e divertida.
Como dar aula particular para 4º ao mesmo tempo
Para dar conta de quase 40 crianças com níveis diferentes de conhecimento e de aprendizado numa mesma sala, Luiz Felipe lança mão de métodos pouco ortodoxos. Para ensinar matemática, recorre a jogos de diferentes tipos que ele mesmo cria, a celulares amarrados a cabos de vassoura, a balanças de bandejas laterais e a material de construção civil. Todas essas invenções partem de uma premissa: que o aluno deve entender para que serve o que vai aprender.
“Quando eu era aluno, uma pergunta não me saía da cabeça: para que serve isso que eu tenho de aprender?”, diz Luiz Felipe. Ao ouvir a mesma pergunta de seus alunos, não foi difícil colocar essa questão como prioridade. Antes de qualquer teoria, as crianças devem ver na prática a utilidade de cada conteúdo escolar.
uiz Felipe passou a criar jogos para ensinar matemática ao lidar com salas de aulas numerosas e com grandes disparidades de nível de conhecimento entre as crianças – dois problemas comuns à maioria das escolas públicas. “O jogo possibilita que os alunos que entendem mais rapidamente ensinem os outros, ao mesmo tempo que se ocupam de forma produtiva”, diz ele. “Enquanto isso, consigo dar mais atenção às crianças com maior dificuldade.” Logo, Luiz Felipe percebeu que os jogos são também ferramentas eficientes (e divertidas) para mostrar a utilidade de teorias. Hoje, parte substancial de suas aulas ocorre nesse formato.
Para alguém com a lembrança de uma aula tradicional de matemática, testemunhar o professor Luiz Felipe em ação com crianças de 11 anos ou com adolescentes de 14 anos produz o mesmo efeito curioso: é fácil esquecer de que se trata de uma aula de matemática. A primeira diferença é que ninguém assiste a nada – todo mundo participa ativamente da aula.
Uma lição sobre soma de números negativos, na sala do 6o ano, começa com as crianças divididas em grupos de quatro. A brincadeira é andar sobre um tabuleiro gigante. Cada criança deve pegar um cartão com um número positivo ou negativo. Quando o número é positivo, a criança anda para a frente. Quando é negativo, movimenta-se para trás. De acordo com o cartão recebido, ela deve também registrar o número da casa em que parou.
O objetivo do jogo não é chegar à casa final do tabuleiro, mas chegar à casa correta de acordo com os cartões que cada criança receber. Todos podem ganhar e todos podem perder. As crianças não sabem, mas enquanto pulam de uma casa para a outra estão efetuando suas primeiras contas com números negativos. Saltando, elas percebem que, ao somar, ficam com menos do que tinham antes. Elas pularão muitas casas antes de aprender a teoria dos números negativos.
Teoria tem hora
Adiar teorias é uma prática comum de Luiz Felipe. Para ele, é um engano exigir da criança abstrações, como fazê-la imaginar o que são números negativos ou frações. Antes, é importante mostrar do que se trata no mundo das coisas concretas. “Nos Estados Unidos, aprende-se fração aos 8 anos. Por lá, eles falam em um quarto de hora e um quarto de dólar”, diz Luiz Felipe. “Aqui, não há esse contato concreto com a fração. Por isso, torna-se mais difícil para a criança imaginar o que é isso.” Antes de encarar contas com frações, os alunos de Luiz Felipe têm de se armar com uma folha de papel de tamanho A4 e medir, com essa folha, quantos metros quadrados tem a sala em que estão. O próximo passo é ir até um pedreiro e entrevistá-lo sobre o material necessário para construir uma sala daquele tamanho.
Com a receita em mãos, as crianças têm o fim de semana para visitar uma loja de materiais de construção. Lá descobrem que dois pacotes de cimento não são suficientes, mas três são demais. Ao chegarem à quantia exata de material, as crianças descobrem que precisarão comprar dois sacos e um terço de cimento, dez pacotes e meio de tijolos e 3 litros e meio de tinta.
Nas aulas de Luiz Felipe, a entrada no mundo das equações matemáticas se dá por meio de uma pequena balança vermelha antiga, com bandejas laterais, que parece saída de um cenário de novela. Com o uso da balança, os alunos aprendem que, para manter o equilíbrio, todo material que se acrescenta de um lado deve ser acrescentado do outro. Tudo o que se tira de um lado deve igualmente sair do outro. “Elas nunca mais mexerão de um lado sem se preocupar com o impacto do outro lado, pois é disso que se trata a equação matemática: manter o equilíbrio”, diz Luiz Felipe.
Uma das últimas invenções do professor tenta dar um sentido prático aos estudos de trigonometria. Normalmente, os alunos começam a estudar o assunto na 7a série com o cálculo de grau, minuto e segundo. “Para nós, adultos, não faz nenhum sentido calcular grau, minuto e segundo. Faz menos sentido ainda para crianças”, diz Luiz Felipe. Antes de entrar na teoria, os alunos de Luiz Felipe aprendem a usar o pau de teodolito, que o professor, em tom de brincadeira, compara com o pau de selfie. Teodolito é uma espécie de telescópio usado em topografia para medir ângulos verticais e horizontais. Com um cabo de vassoura e um celular preso à ponta, as crianças improvisam um teodolito. Contam com a ajuda de um aplicativo instalado no celular, que lhes permite calcular o ângulo e a altura do pôr do sol e de qualquer outro ponto distante. “É um jeito de eles começarem a usar trigonometria antes mesmo de saber esse nome”, diz Luiz Felipe.
“Ele nos mostra para que servem as coisas! A gente não decora, quando vamos lá fazer, sabemos o que queremos descobrir”, diz Lucas Coelho, de 14 anos, um dos medalhistas olímpicos de Luiz Felipe. Nos dois anos em que competiu nas olimpíadas de matemática, Lucas ganhou uma medalha de bronze e uma menção honrosa. Fala com tal empolgação das aulas de Luiz Felipe que levanta a voz e os amigos pedem calma. “A maioria dos professores fica brava quando perguntamos para que serve o que estudamos”, diz.
Os esforços dos alunos da Francis Hime não são recompensados apenas com medalhas ou notas. Há alguns anos, um ritual se repete todos os anos na escola: numa data fixa do calendário escolar, as melhores escolas particulares de ensino médio da região de Jacarepaguá, no Rio, participam de uma exposição na Francis Hime. O objetivo das escolas é atrair, com bolsas de estudos integrais, o maior número de alunos possível da Francis Hime para suas salas. Bons alunos costumam significar pontuações maiores no Enem – um marketing e tanto para qualquer colégio.
Os irmãos Lucas e Matheus Silva Brito, de 18 anos, estudaram durante três anos num dos colégios privados da região, com bolsa integral. Como aluno de Luiz Felipe, Lucas ganhou três medalhas de matemática. Hoje, ele cursa engenharia mecatrônica na Universidade Católica de Petrópolis. Matheus, que ganhou duas medalhas, está se preparando para a prova de bolsa de estudos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) para cursar eletrotécnica. “Perdemos o medo dos números”, diz ele. O pai dos garotos, Pierre dos Santos Brito, dono de uma serralheria e pai de mais dois filhos, não conseguiria bancar as faculdades nem o ensino médio privado para os meninos. As aulas de matemática de Luiz Felipe não mudaram apenas a relação de Lucas, Matheus e de seus colegas com os números. Mudaram também a trajetória de muitos deles.
Como Luiz Felipe virou professor
A maior análise de dados já feita em educação mostra que, de todos os fatores com influência na vida do aluno, do ambiente à educação dos pais, nenhum tem tanto impacto quanto ter um bom professor. Para chegar a essa conclusão, a pesquisa feita pelo neozelandês John Hattie, diretor do Instituto de Pesquisas em Educação da Universidade de Melbourne, na Austrália, cruzou informações de 65 mil grandes estudos feitos nos centros de pesquisa mais conceituados do mundo. O levantamento concluiu que cada ano de aula com um professor excelente faz com que as crianças avancem o equivalente a um ano e meio em relação a quem tem um mestre mediano. O efeito de ter bons professores durante vários anos é decisivo: os alunos têm muito mais chance de entrar numa faculdade e, consequentemente, de obter melhores empregos e ter uma renda significativamente maior.
A questão que atormenta os governos é: como formar professores excelentes? A história de Luiz Felipe dá algumas pistas. Embora seja comum ouvir que “ele nasceu com o dom de dar aula”, Luiz Felipe na verdade desenvolveu suas habilidades com muito trabalho e recorrendo a ajuda dentro e fora da escola. A primeira vez que Luiz Felipe encarou sozinho uma sala de aula foi uma surpresa para ele. Como aluno do 3o ano de matemática da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele cumpriria seu primeiro dia de estágio fora dos muros da universidade. Ele aguardava o professor de matemática numa escola estadual para jovens e adultos na periferia do Rio, quando o diretor entrou na sala e o informou que o professor, a partir daquele dia, seria ele. “Fui um desastre de professor”, lembra Luiz Felipe. “Ora dava exercícios muito adiantados, ora muito básicos. Não fazia a menor ideia de como começar cada aula.”
Depois desse fiasco, Luiz Felipe pediu ajuda aqui e ali, na faculdade e na própria escola, até conseguir estruturar o que chama de esquema clássico de aulas. Explicava o ponto e dava exercícios para a turma. Em alguns meses, seus alunos conseguiram recuperar o atraso. À medida que se tranquilizava com a tarefa de ensinar, outra inquietação surgia. Luiz Felipe percebeu que suas aulas eram tediosas e metódicas, iguais às da sua infância. “Eu não tinha ideia se os alunos com as melhores notas tinham compreendido o que deveriam ou se apenas memorizaram”, diz.
Essa angústia o levou a procurar a turma do Projeto Fundão, um grupo de professores de matemática que se encontra para discutir formas de melhorar as aulas. O nome vem do campus da Ilha do Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), local onde ocorrem as reuniões. “Lá tive contato com teorias sobre como ensinar, algo que não tinha estudado na faculdade, e encontrei professores com problemas parecidos com os meus”, diz ele. Luiz Felipe frequentou os encontros semanais por dois anos. “No Fundão, entendi o que me faltava para ser um bom professor. Mas onde aprendi, na prática, a dar aulas foi num curso chamado álgebra para a sala de aula, na Pontifícia Universidade Católica (PUC)”, afirma. “Até então eu era um matemático tentando desastradamente dar aula.” Durante os dois anos na PUC, Luiz Felipe desenhou sua didática. “Ela nasceu das dificuldades e da realidade dos meus alunos.”
Professor 24 horas
A tímida Kettellyn Rodrigues dos Santos, de 14 anos, está no 9o ano. Desde o 6o, sai de casa às 4h40 da manhã para assistir às aulas da Francis Hime às 7h30. Ela mora em Vargem Grande, a 50 quilômetros da escola. Para atravessar os bairros Vargem Pequena, Jacarepaguá e Curicica e voltar para casa, a menina passa cinco horas por dia no ônibus. “Quero ser médica”, diz Kettellyn, ao explicar sua Via Crucis. “Só posso estudar em faculdade pública. E, para conseguir isso, quero ser aluna do professor Luiz Felipe. Aprendi a estudar com ele.”
Kettellyn também participa das olimpíadas de matemática. Há cinco anos, coleciona menções honrosas, mas nenhuma medalha. “Acontece uma coisa ou outra e eu não passo para a fase final”, diz ela. Ainda assim, não desiste. “A medalha não é tão importante. Enquanto estudo para as olimpíadas, estudo para tudo. E participar das provas ajuda a me preparar para os vestibulares.”
A reputação de Luiz Felipe atrai alunos de longe, como Kettellyn, e faz com que ele seja muito assediado por escolas particulares. No ano passado, um empresário paulista ofereceu R$ 20 mil de salário para que Luiz Felipe coordenasse uma fundação escolar na região do Circuito das Águas, no interior de São Paulo. Foi a primeira vez em que ele balançou. “Eu teria liberdade para mexer no método e no treinamento dos professores”, diz Luiz Felipe. Pensou também que poderia deixar de pagar o aluguel da casa de dois quartos em que mora com a mãe, dona Elvira, de 64 anos, vendedora aposentada. Mas recuou. “Teria de deixar a sala de aula… não aguentaria”, diz.
Neste ano, cedeu a um dos convites. A dona de uma escola no bairro onde mora, Curicica, uma velha conhecida, ficou viúva e o convenceu a ajudá-la. Luiz Felipe dá aulas lá duas manhãs por semana. Juntando o salário bruto das duas escolas, Luiz Felipe tira pouco mais de R$ 8 mil por mês. “É um bom salário, não é? Não me falta nada”, diz.
Em sua casa, a decoração dá dicas da dedicação de Luiz Felipe às aulas e aos alunos. O enxoval estampado com operações matemáticas está em todos os lugares: nas almofadas da sala, na mesa da cozinha, na colcha de cama. Solteiro, Luiz Felipe mantém um quarto que parece de adolescente. Medalhas, retratos de alunos, diplomas e condecorações enchem a única parede sem prateleiras. Pelos cantos do quarto, estão cartolinas, peças de EVA, cola, tesoura e fitas coloridas. “São para os jogos que crio”, explica. “Tudo o que o Luiz Felipe faz é para os alunos”, diz dona Elvira. “Ele se preocupa tanto com os meninos que até eu me pego rezando por eles.” Próximo aos porta-retratos com fotos dos alunos, estatuetas de São Jorge, São Longuinho, São Judas Tadeu e do Pai Joaquim, uma entidade espírita, mostram que Luiz Felipe também reza.
Na sala de aula, muitas vezes, ensinar matemática é a menor das preocupações de Luiz Felipe. Na convivência com colegas e em cursos de especialização, ele encontrou o treinamento pedagógico que não recebeu na faculdade. Mas, no dia a dia, ele se debate com questões que pedagogia nenhuma resolve. Um de seus alunos passou a receber bombons – reservados àqueles que acertam os resultados – mesmo sem dar as respostas certas. “Chegou muito perto!”, diz Luiz Felipe, diante dos protestos dos demais alunos. O garoto de 11 anos aprecia a atitude protetora do professor. E, embora falte às aulas com frequência, não perde as de matemática. Eles não conversam sobre isso, mas ambos sabem o porquê desse tratamento privilegiado. Há dois meses, o menino viu o irmão de 15 anos ser arrastado para fora de casa por milicianos da comunidade onde mora. Foi a última vez que o viu. Desde então, seu rendimento na escola caiu. “O que faço é tentar dar uma aula que os fará esquecer, por algumas horas, o que os perturba”, diz Luiz Felipe.
Há quatro anos, um de seus alunos, de 13 anos, que se tornara craque em matemática, saiu da escola e nunca chegou em casa. Seu corpo foi encontrado numa vala na comunidade onde morava. A polícia diz que foi o tráfico. Ninguém mais soube de nada. “Os professores deveriam receber treinamento para lidar com essas situações”, diz ele.
Episódios graves como esses são raros, mas o cotidiano das crianças, oriundas muitas vezes de famílias vulneráveis, é recheado de situações delicadas. Um divórcio conflituoso, um caso de violência doméstica e mesmo uma gravidez indesejada param no colo do professor. “Não adianta dizer que não é trabalho da escola. Para muitos alunos, aqui é o único local em que podem se recuperar”, diz.
Neste ano, a fama de Luiz Felipe de conseguir ensinar mesmo as crianças com maior atraso escolar lhe trouxe novos desafios. A direção da Francis Hime lhe encaminhou quatro crianças com graus diferentes de autismo. Duas delas estão na mesma sala, mas são muito diferentes. Uma é um gênio em matemática, mas tem dificuldades de relacionamento. A outra não entende o básico da lógica dos números. Pela regra, a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro deveria preparar previamente os professores para lidar com crianças especiais. A prática é distinta. “Nunca recebi treinamento algum para ensinar crianças com autismo”, diz Luiz Felipe. Ele fez por conta própria dois cursos on-line sobre educação inclusiva ao mesmo tempo que finalizava seu mestrado profissional sobre o uso de jogos no ensino de matemática. No final do ano letivo, descobriu que a Secretaria dará um curso sobre Helena Antipoff, psicóloga e educadora russa especialista em crianças com deficiências. Enquanto o curso não chega, Luiz Felipe lê o que pode sobre ela. “É muito interessante. Mas não será fácil”, diz. Para os professores, mesmo os melhores, nunca é.
Confira as outras reportagens da série:
>> Todo o poder ao professor
>> Bernadete Gatti: “Nossas faculdades não sabem formar professores”